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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Cachorro Estrela

Há diversos aspectos da minha vida que se tornam mais significativos pelo fato de eu morar sozinho. Nem todos eles são agradáveis, mas todos eles tem um ar de liberdade que transforma mesmo os aspectos mais incômodos em um exercicio de liberdade. Louça acumulando na pia? Bom, eu iniciei um nova experiência científica que se constitui de deixar a louça lá até que eu precise de louça limpa novamente. Para mostrar o meu desapego a necessidade de lavar a louça eu comecei a comprar apenas comida pronta. Aqueço no microondas e como na embalagem. Perfeito! O experimento de não lavar a louça tem sido um sucesso a quase quatro meses. Se bem que eu devo dizer que a essa altura a sujeira começou a cristalizar e acho que vou ter comprar panelas e pratos novos. Mas ei, tudo em nome da ciência.
Então como eu dizia, quando você mora sozinho há várias coisas que eram ruins e se tornam boas e várias coisas boas que se tornam ruins. Um dia eu fui agraciado com a presença de um cachorro. Sabe quando você está acordando de uma ressaca e não sabe bem quem é ou onde está? Foi exatamente esse momento que esse animal entrou na minha vida. Eu havia saído de uma despedida de solteiro e estava me recuperando de um porre homérico, daqueles que a calçada começa a parecer uma cama atraente quando a sua casa está cada vez mais longe. Eu devo ter entrado em casa sem fechar a porta e na manhã seguinte esse indivíduo peludo estava lá lambendo o meu nariz enquanto eu implorava ao mundo para parar de girar. Eu posso dizer sinceramente que a última coisa que alguém que está morrendo de dor de cabeça quer ouvir é o latido de um cachorro no sábado pela manhã. Eu me levantei cambaleando e não tive energias para me espantar com a presença do cachorro. Só tive a presença de espírito de repreendê-lo por ter deixado a porta aberta e voltei a dormir. Depois de mais umas duas horas de um sono mal dormido a minha mente começou a raciocinar  que eu não tinha um cachorro e portanto eu poderia estar na casa errada. Me acordei rapidamente e para meu alívio percebi que estava em casa. Bom se eu não estava na casa errada o cachorro estava e isso era mais do que eu podia raciocinar por enquanto, então decidi simplesmente ignorá-lo pelos próximos dias. Essa atitude começou a não surtir muito efeito quando o cachorro se negou a limpar a própria sujeira e não queria comprar a sua própria comida.
Depois de uma semana decidi ter uma conversa definitiva com o cachorro. Me preparei psicologicamente pesquisando na internet o tópico "Como ter sucesso em negociações com cães". O primeiro tópico aconselhava a chamar o cachorro pelo nome de forma autoritária. Mas qual seria o nome do cachorro? Decidi chamá-lo de Téti, um nome razoavelmente feminino e que me pareceu adequado aos traços afeminados do que eu supunha ser uma cadela. Assim que eu a repreendi veêmentemente Téti olhou diretamente para mim e levantou a perna urinando no meu computador em uma clara atitude que demonstrava que "Teodoro" teria sido um nome mais apropriado para o cachorro. Não pude culpá-lo pois se alguém confundisse o meu sexo provavelmente urinar no seu CPU seria obviamente a minha reação. Pelo sim, pelo não mantive o nome, já que não sei se seria adequado rebatizar o cachorro, traumas à parte acho que ele se adequou bem. Esperei mais uns dias depois de minha gafe inicial e resolvi retomar o assunto com Téti. Consultei novamente a Internet e resolvi procurar em uns sites que ensinavam a lidar com jovens promissores porém revoltados, classificação obviamente adequada a Téti uma vez que ele demonstrava uma clara revolta ao velho sistema autoritário quando se recusava a perseguir gatos. Achei um tópico que aconselhava a ser extremamente específico nas suas considerações com os jovens e que se fosse preciso eu escrevê-se o que queria dizer e lê-se para que a mensagem chegasse na integra ao jovem. Pela manhã antes de sair de casa verifiquei que Téti não havia gostado de eu ter pego o último biscoito canino do pacote para provar e havia retaliado mordendo todo o meu controle do Xbox 360. Ponderei friamente a respeito e decidi que esse seria o dia.
À noite assim que cheguei da faculdade chamei Téti, me sentei e puxei a carta, redigida durante a aula de Marketing a qual não prestei a devida atenção:

"Cara, tú tá reclamando por 1BOLACHINHA.
Eu tenho certeza que esse é o tipo de decisão que te parece tender a obstinação mas no fim acaba se parecendo muito mais um erro calculado de decisão arbitrária que as pessoas que começam a conviver contigo acabam se aconstumando. É engraçado que por outro lado a sua parte lógica e imparcial me parece inerente a todos os nossos contatos. Essa inconstância sempre te deixa mais interessante, porém ao mesmo tempo difícil de socializar. Eu poderia dizer que você pode responder a qualquer tipo de brincadeira com um sorriso ou um xingamento, o problema é que o ônus de descobrir como será essa resposta é sempre da outra pessoa. Um tanto quanto difícil de advinhar como você vai se portar diante de uma determinada situação e por isso mesmo imprevisivelmente exaustante interagir com você. Se você não fosse tão interessante, determinado, e uma boa companhia eu certamente não me cansaria a escrever uma linha a seu respeito. Obviamente não é o caso. Entenda que muitas vezes estamos ambos cansados para nos chatearmos com qualquer outra coisa além do nosso exaustivo trabalho, ter que me preocupar com as suas imprevísiveis reações é algo além do cansativo, isso exauri as forças da paciência de qualquer pessoa. Infelizmente, para mim, eu não tenho escolha a não ser continuar me penitenciando em nossa amizade já que não quero perder um amigo tão interessante pelo simples fato de que estou cansado demais para me preparar psicologicamente para nossos inesperados confrontos a respeito da fome gerada pela ausência de um mísero biscoito canino. Na falta de outra opção a não ser não me deixar abater por essas inconsistências alimentícias e psicológicas peço desculpas antecipadas por todas as falhas a sua imprevisível moral ao longo dos próximos anos. Que você me perdõe pelas minhas inevitáveis ofensas que virão ao longo dos anos, ainda que involuntárias, sejam elas a apropriação indevida de 1 bolachinha ou o comentário distorcido e absurdo de que você seria uma cadela, isso foi a mais ou menos uns dois mêses atrás e você não esquece né? Sendo assim me despeço, pedindo tão somente que você tenha compaixão pelas minhas absurdas e impensadas falhas e que elas não comprometam a nossa jovem amizade a qual eu prezo tanto."
 
Logo percebi que o impacto de nossa conversa havia sido severo e que Téti havia ficado com um comportamento um tanto quanto contido. Obviamente essa impressão passou assim que ele descobriu que as minhas toalhas de banho viraram ótimos inimigos para seu treinamento de artes marciais que ele insiste em ter quando eu não estou em casa. Pela ferocidade que a minha última toalha foi destroçada começo a imaginar que ele esteja em um nível faixa preta. Engraçado como é importante ter alguém em casa para nos ouvir reclamar ou simplesmente para responder com um latido debochado quando você conta uma piada sem graça. É isso que morar sozinho faz com a gente, começamos a aturar mesmo os mais inoportunos companheiros de quarto só para termos uma companhia...

"Quando o melhor amigo de um homem é seu cachorro, o cachorro têm um problema."
Edward Abbey

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